ORIENTE MÉDIO / LUTA IDEOLÓGICA
Fonte: Le Monde Diplomatique - Setembro de 2007 - http://diplo.uol.com.br/2007-09,a1906
Jimmy Carter e o apartheid israelense
Por ter denunciado as condições desumanas impostas à população palestina e a desapropriação de suas terras por colonos judeus, o ex-presidente norte-americano foi acusado de anti-semitismo e tornou-se alvo de uma cruzada da extrema-direita
Mariano Aguirre
“Como é possível que esse homem tenha se tornado presidente dos Estados Unidos?” — New York Post no editorial de 15 de janeiro de 2007. Todo leitor, por pouco informado que seja, pensa que o jornal do grupo Robert Murdoch esteja acertando contas com George W. Bush. Mas não é disso que se trata. “Presidente fracassado, tornou-se um amigo dos tiranos da esquerda, inimigo global de todos os interesses legítimos da América”, prossegue o jornal. Quem é esse presidente, “conselheiro de relações públicas de Yasser Arafat”, que “demoniza Israel”, e que, além disso, “desculpa execuções em massa”? A resposta: Jimmy Carter. “Ele passou do limite”, inflama-se o New York Post, pedindo ao Partido Democrata que reaja a tudo o que o ex-inquilino da Casa Branca possa declarar.
O que terá feito o ex-presidente (1977-1981) para merecer tal tratamento? Escreveu um livro: Palestina. Paz, sim. Apartheid, não. [1] , afirma que, se a repressão continuar em Gaza e na Cisjordânia, se Israel não consentir em negociar a existência de um Estado palestino, poderemos chegar a uma situação semelhante à do apartheid sul-africano: “dois povos habitando a mesma terra, mas completamente separados um do outro, com os israelenses ocupando a posição dominante e privando os palestinos, de forma repressiva e violenta, de seus direitos fundamentais”. Em resposta, a Liga Antidifamação mandou publicar anúncios em diversos jornais, acusando-o de anti-semitismo.
Carter respondeu , deixando claro que estava se referindo ao impacto da situação na Palestina, e não na democracia israelense. A comparação, a despeito disso, provocou duras reações de parte da comunidade judaica norte-americana que, a exemplo da Liga Antidifamação, rotula toda crítica à política israelense como anti-semitismo. O efeito foi imediato: o Partido Democrata acatou os conselhos do New York Post. Tanto Howard Dean, presidente do partido, quanto Nancy Pelosi, sua líder no Congresso, distanciaram-se de Carter. Decisão incômoda, pois, em período eleitoral, obrigou-os a assumir publicamente uma posição diante do conflito israelense-palestino.
Os leitores não pensam da mesma maneira: vários meses após a sua publicação, o livro continua a fazer bastante sucesso. Analista político, judeu norte-americano e diretor do US Middle East Project, Henry Siegman estima que se trata de uma obra normal e sem grandes novidades, e que o pânico que provocou “revela a ignorância do sistema político norte-americano, tanto entre os democratas, quanto entre os republicanos, sobre o conflito israelense-palestino » [2].
Carter, que aproximou as posições de Israel e do Egito quanto à retirada das forças israelenses da península do Sinai, de forma a possibilitar a assinatura do Acordo de Camp David (1979), fala, no livro, de suas recordações de viagem e contatos com os dirigentes da região, há 30 anos. Discorrendo didaticamente sobre o conflito, faz uma compilação equilibrada das propostas de paz existentes, levando em conta a necessidade de um Estado para cada uma das duas comunidades, e de garantias de segurança suficientes para Israel. Para quem o lê sem preconceitos, o livro critica a política israelense, mas não é hostil ao país, contrariamente ao que seus detratores querem demonstrar.
Enquanto a repressão israelense continuar, haverá terrorismo, afiança Carter, na contramão da “guerra ao terror” de Bush. Ressalta igualmente que “a colonização e o controle contínuos das terras palestinas por parte de Israel foram os principais obstáculos para a obtenção de um amplo acordo de paz na Terra Santa”. Sem deixar de condenar o terrorismo palestino – o que não é suficiente para Ethan Bronner, um crítico do New York Times [3]–, o ex-presidente acrescenta que, desde o acordo de Camp David, os governos israelenses foram os principais obstrutores do processo de paz. Lembra, com efeito, que o primeiro-ministro israelense, Menahem Begin, foi o primeiro a recusar a aplicação de algumas das disposições do acordo, tais como o respeito às resoluções 242 e 338 da ONU, que proibia a apropriação do território por meio da força, solicitando a retirada israelense da Cisjordânia e de Gaza e “o reconhecimento do povo palestino enquanto entidade política diferente e com direito de determinar seu futuro". Além disso, ele concorda com as teses segundo as quais, durante a conferência de Camp David de julho de 2001, entre o presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, o primeiro-ministro israelense Ehud Barak e o líder palestino Yasser Arafat, não teriam sido feitas propostas concretas a Arafat sobre a construção de um Estado palestino. Seria, portanto, falso afirmar que o presidente palestino impediu as negociações, tendo assim desperdiçado uma grande oportunidade. Por ter desenvolvido tal hipótese, Carter foi repreendido por Denis Ross, o emissário especial de Clinton para o Oriente Médio [4]. No entanto, tal hipótese é defendida por outros especialistas [5]
“Há um incômodo generalizado no mundo árabe e na Europa, que, porém, não é sentido nos Estados Unidos, a respeito da ausência de consideração por nosso governo do sofrimento palestino”, diz Carter. “E não é preciso ser contra Israel para, no entanto, proteger o direito dos palestinos de viver em seu próprio território e em paz, sem estarem sujeitos à ocupação por uma potência” [6]. Comum na Europa e no mundo árabe, esse tipo de afirmação é de fato menos freqüente nos Estados Unidos.
O ex-presidente menciona, ainda, que o governo de George W. Bush abandonou os palestinos à sua triste sorte, e lembra que Israel bloqueia as possibilidades de um acordo. A recusa dos governos Bush e Olmert em negociar com o governo de coalizão palestina (Fatah e Hamas), em março de 2007, confirmou dramaticamente essa realidade. Violentamente atacado por sua referência ao apartheid, Carter reafirmou sua posição declarando: “A alternativa à paz é o apartheid, não dentro de Israel, repito, mas na Cisjordânia, em Gaza e em Jerusalém Oriental, territórios palestinos. É nesta zona que o apartheid existe sob sua forma mais desprezível, os palestinos são privados de seus direitos humanos mais fundamentais” [7]. Em face desse fato, Carter insiste sobre as três condições necessárias para conquistar a paz na região: garantias para a segurança do Estado de Israel, fim da violência dos palestinos, e reconhecimento, por parte de Israel, do direito desses últimos disporem de um Estado nas fronteiras anteriores a 1967.
Carter chegou a dizer que a vida pode ser “mais opressiva” para os palestinos da Cisjordânia do que era para a população negra sul-africana. Em termos econômicos, Israel depende, cada vez menos, da força de trabalho palestina, em razão dos fluxos migratórios vindos de outros países; a ocupação de Gaza e da Cisjordânia mobiliza muito mais efetivos de segurança que os requeridos pelo regime sul-africano; os colonos israelenses ocuparam a terra palestina e, para tornar sua vida e sua infra-estrutura seguras, o Estado israelense faz uso de um sofisticado sistema de controle dos palestinos.
Em um longo artigo, Joseph Lelyveld, até pouco tempo atrás diretor executivo do New York Times e ex-correspondente na África do Sul, considera que Carter empregou de modo restrito o conceito de apartheid ao aplicá-lo ao problema israelense-palestino, pois ele o limita à separação entre israelenses e palestinos e ao confisco das terras por parte de Israel. Para ele, no entanto, o problema é muito mais grave e as semelhanças entre o apartheid e o sistema israelenses são ainda mais numerosas. Comparando as duas situações, Lelyveld ressalta que, proporcionalmente, Israel apropriou-se da mesma quantidade de territórios que o regime racista da África do Sul. Durante o apartheid, havia um sistema extremamente complexo de permissões para regular os deslocamentos dos indivíduos, de acordo com seu estatuto legal, como impõe, hoje em dia, Israel, por meio de um regime similar, para classificar e limitar o deslocamento dos palestinos.
O correspondente do jornal britânico The Guardian em Israel, Chris McGreal, acrescenta: “Há poucos lugares no mundo onde os governos constroem uma série de leis sobre as nacionalidades e as residências, concebidas para serem utilizadas por uma parte da população contra a outra.A África do Sul do apartheid foi um deles. Israel é outro” [8] O jornalista fala com conhecimento de causa, pois também foi correspondente do The Guardian, durante dez anos, na África do Sul. As comparações que estabelece entre os aspectos da dominação israelense sobre os palestinos e os do apartheid sul-africano confirmam as semelhanças, não apenas das formas de opressão, como também do sofrimento infligido.
Os serviços públicos oferecidos pelo município de Jerusalém, por exemplo, são freqüentemente melhores para os israelenses do que para os palestinos que vivem na parte anexa à cidade. Pouco após a publicação, em The Guardian, dos artigos expondo as comparações e as estreitas relações militares que existiam entre o regime do apartheid e Israel, o Committe for the Accurancy in Middle East Report in America (Camera) acusou Chris McGreal de mentir e de falsificar fatos para deslegitimar Israel [9]
Na realidade, a acusação que pesa sobre Tel Aviv, de aplicar um sistema similar ao do apartheid, é cada vez mais freqüente dentro da própria sociedade israelense. Para os críticos do governo – tais como o corajoso advogado Daniel Seidemann, que defende os palestinos há anos, apoiando-se nas leis israelenses – e para as organizações de defesa dos direitos humanos, trata-se de um fato. Vários autores compararam os dois regimes – o apartheid sul-africano e a ocupação israelense dos territórios palestinos. A fundação social-democrata alemã Friedrich Ebert, por exemplo, publicou três estudos sobre o processo de negociação e de transição sul-africana e sobre os ensinamentos que poderiam ser tirados para conquistar um processo de paz entre Israel e Palestina [10].
A exclusão dos palestinos iniciou-se em 1948, com a expulsão de 750.000 pessoas. Essa política continua, mediante diversas formas de pressão, para forçá-los a abandonar sua luta por um Estado, partir ou aceitar viver em zonas distantes, submetidos à condição de cidadãos de segunda classe (de acordo com essa interpretação, a retirada israelense de Gaza foi uma forma de prisão para a população local). Em um livro bastante documentado, Ilan Pappe descreve as formas repressivas institucionalizadas que seu país utilizou para transferir a população palestina e submetê-la a um estatuto de cidadania de segunda classe. Indo bem mais longe do que o ex-presidente Carter, Pappe considera que, se “limpeza étnica” significa “a expulsão pela força de uma região ou território particular com o intuito de homogeneizar uma população etnicamente mista”, e se “a intenção dessa expulsão é a de provocar o êxodo de uma grande maioria de residentes, colocando todos os meios à disposição daquele que expulsa”, então Israel praticou tal procedimento durante seis décadas [11]
Situação destrutiva para os palestinos, mas igualmente para a sociedade israelense. Um artigo da revista judaica Tiddun, publicada nos Estados Unidos, afirma que os ideais do sionismo – criar um Estado que fornecesse refúgio à comunidade judaica no mundo e que constituísse modelo de liberdade – foram frustrados. “O sonho sionista tornou-se um pesadelo”, declara Jerome Slater. “Por um lado porque não há lugar mais perigoso para os israelenses do que Israel, e, por outro, em razão do ‘pecado original’, de ter desprovido os palestinos de sua terra” [12].
As mesmas críticas feitas por Carter em relação a Israel e aos Estados Unidos encontram-se, de forma mais detalhada, no recente livro do norte-americano de origem palestina Rashid Khalidi, igualmente vítima de ataques sistemáticos desde que a Universidade de Columbia atribuiu-lhe, em 2003, a cátedra de Edward Said e a direção do Instituto de Estudos sobre o Oriente Médio [13]. Em suas últimas obras, Khalidi descreve a relação existente entre a concepção imperialista das relações norte-americanas com o Oriente Médio e a maneira pela qual Tel Aviv e Washington impedem a formação de um Estado palestino [14]. O New York Post, que o acusou de anti-semitismo em 2004, insinuou igualmente que a cátedra de Edward Said era financiada por certos governos árabes.
A pressão , da qual Khalidi é vítima, tornou-se uma prática freqüente nos campus universitários dos Estados Unidos. Diversas organizações, entre as quais algumas de estudantes, são encarregadas de pesquisar sobre tudo o que dizem e fazem os professores qualificados como “anti-semitas”, e fazer filmes acusando-os e denunciando-os. A organização David Project Center for Jewish Leadership, de Boston, realizou um filme, em 2004, sobre as supostas pressões acadêmicas e políticas dos professores Joseph Massal e George Saliba, da Universidade de Columbia, contra estudantes judeus [15]. Em seu site na internet, encontra-se uma seleção de mais de 30 artigos criticando o livro de Carter [16]. Há, igualmente, grupos e sites da web encarregados de analisar o trabalho de organizações de defesa dos direitos humanos e de fundações norte-americanas, para denunciar o que consideram como políticas anti-semitas ou de apoio econômico a organizações palestinas.
Acusando Khalidi de “não ser objetivo” [17], Campus Watch organizou, por sua vez, uma denúncia sistemática das supostas declarações contra Israel e os Estados Unidos nas salas de aula. Em uma página na web, criada pelo antiislamista de extrema direita Daniel Pipes, os estudantes são estimulados a fornecer informações sobre os professores [18]. A tensão em torno dos professores críticos em relação a Tel Aviv aumentou, no ano passado, quando dois acadêmicos liberais de prestígio, especialistas em relações internacionais, publicaram um ensaio ressaltando que os “grupos de pressão judeus” nos Estados Unidos dominavam, em grande medida, a política externa americana no Oriente Médio e que a guerra do Iraque não teria sido possível sem o clima criado por eles [19]. A reação foi bastante dura.
Alguns meses mais tarde, o acadêmico britânico de origem juda ica Tony Judt, diretor do Instituto Remarque da Universidade de Nova York, dedicado a estudos europeus, foi igualmente vítima de uma campanha, por suas supostas idéias “anti-semitas”. Ele havia sustentado que a única solução para o conflito do Oriente Médio seria a existência de um Estado israelense-palestino, integrando as duas nações [20]. Como em sua juventude Judt manteve posições pró-israelenses, , hoje em dia, ele é considerado traidor. Em outubro de 2006, a Liga Antidifamação pressionou o consulado polonês em Nova York para que fosse anulada uma conferência que ele deveria pronunciar nesse país. A anulação iniciou uma áspera polêmica. No entanto, Judt pôde ressaltar que o futuro de Israel estaria comprometido se esse país continuasse com sua política de ocupação repressiva na palestina. Ele o fez em um jornal liberal israelense [21].
traduções deste texto >> English — Shooting the messengers français — Israël, l'antisémitisme et l'ex-président James (...) فارسى — اسرائيل، يهودستيزي و جيمز کارتر
[1] Jimmy Carter. Palestina. Paz, sim. Apartheid, não. Lisboa, Editora QuidNovi, 2007.
[2] Henry Siegman, “ Hurricane Carter ”, The Nation, 22 de janeiro de 2007.
[3] Ethan Bronner, “Jews, Arabs and Jimmy Carter”, The New York Times, 7 de janeiro de 2007.
[4] Dennis Ross, “Don’t play with maps”, The New York Times, 9 de janeiro de 2007.
[5] Ver Hussein Agha e Robert Malley, “Camp David: the Tragedy of Errors”, New York Review of Books, 9 de agosto de 2001. Tanya Reinhart, “Israel-Palestina. How to End the War of 1948”, Seven Stories Press, Nova York, 2002. E Alain Gresh, “Uma paz despedaçada?”, Le monde diplomatique -Brasil, julho de 2002.
[6] Entrevista com Amy Goodman e James Carter no programa Democracy Now!, 30 de novembro de 2006.
[7] Idem.
[8] Chris McGreal, “Worlds Apart”, The Guardian, 6 de fevereiro de 2006.
[9] Câmera, 20 de fevereiro de 2006.
[10] Yair Hirschfeld, Avivit Hai, Gary Susman, Learning from South Africa. Lessons to the Israeli-Palestinian Case. Israel, Friedrich Ebert Stiftung e Economic Cooperation Foundation, 2003.
[11] Ilan Pappe, The ethnic cleansing of Palestina, Oxford, Oneworld Publications, 2006.
[12] Jerome Slater, “The need to know” (resenha do livro de Tanya Reinhart, The road map to nowhere), Tikkun , janeiro de 2007. Essa revista publicou igualmente uma entrevista com Carter: “Current Thinking”, janeiro de 2007.
[13] Rashid Khalidi, The iron cage: the story of the Palestinian struggle for statehood, Boston, Beacon Press, 2006.
[14] Rashid Khalidi, Resurrecting Empire, Boston, Beacon Press, 2004.
[15] “Mideast tensions are getting personal on campus at Columbia”, The New York Times, 18 de janeiro de 2005.
[16] Leia mais
[17] Philip Kennicott, “The knowledge that doesn’t power”, The Washington Post, 13 de maio 2004.
[18] Leia mais
[19] John Mearsheimer e Stephen Walt, “The Israeli lobby”, The London Review of Books, 23 de março de 2006.
[20] Tony Judt, “ Israel : the alternative ”, The New York Review of Books, 23 de outubro de 2003.
[21] . Tony Judt, “The country that wouldn’t grow up”, Haaretz, 18 de dezembro de 2006.
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